desmentiras em série

Se conseguisse atuar melhor poderia levar pro túmulo todos os seus segredos e as mentiras contadas teriam se tornado verdades. Não fosse o tempo entre uma piscada e outra, seria possível esconder até o medo que percorre suas veias, mas é aí que reside o problema: quando seus olhos se abrem fica fácil enxergar com clareza o subtexto do que diz, mesmo quando não há palavras. É no olhar que entrega e expõe, sem controle, tudo aquilo que pensa. Por isso, tenta distrair as pessoas com gestos desmedidos e sorrisos grandiosos. Prefere gerar estranhamento do que a sensação de que tudo o que faz é movido por falsidade e mentira. Mesmo que no fundo saiba, e até goste, de inventar caminhos alternativos à verdade. Sente que de alguma forma, usa da criatividade pra gerar reflexão. E ainda que não consiga controlar os lapsos de sinceridade que transpassam seus olhos, sabe que as mentiras criadas caem de maneira confortável no colo dos que ouvem. Queiram eles acreditar ou não. Diz que seu papel é unicamente colocar as verdades em roupagens diferentes da original. Uma espécie de teste ou ação social. Só não abre mão disso porque sabe que de uma forma ou de outra permanecerá de olhos fechados eternamente e ninguém, jamais, poderá questionar o que foi dito, pois seus olhos não mais abrirão e lapsos de sinceridade serão impossíveis de ser decifrados.

vida que segue

te convidei
pra vir aqui
sentar ao meu lado
e ser feliz
cê riu de mim.

então pensei em me jogar
do alto de algum andar
cair no chão e ter meu fim
sem ser seu par.

mas respirei e decidi
não me prender ao que me diz
vou ser feliz sem ter você
pra me barrar.

silêncio

Ele morreu. E eu nem sequer troquei uma palavra com ele. Nunca. Nenhuma vez em toda a minha vida. É estranho que ao mesmo tempo que era tão familiar, fosse tão distante. Eu sempre o via na porta de sua casa. Sentado, observando a rua. Às vezes sozinho, às vezes rodeado de familiares ou amigos. Foi assim desde que eu consigo lembrar das coisas. Minha mãe dizia que quando mais novo ele dava aula e era muito conhecido na região onde a gente mora. Diziam que ele era um ótimo professor. Devia ser um bom pai também, acho. Cheguei a conversar com as filhas dele algumas vezes. Todas mais velhas que eu, uns dez ou quinze anos. Talvez mais que isso. Uma delas foi babá da minha irmã durante um tempo. É engraçado como as pessoas estão tão perto da gente e ao mesmo tempo tão longe. Eu sei que ele também me via e talvez até comentasse dentro de casa alguma coisa sobre mim, assim como vez ou outra a gente fazia aqui em casa a respeito dele. Acho que é normal ver um vizinho na rua e citar ele numa conversa com os pais, irmãos ou amigos. Não deveria ser normal a gente ver as pessoas na rua e ignorá-las. Não deveria ser normal a gente se fechar pro mundo e se distanciar uns dos outros. Minha mãe bateu na porta há menos de dez minutos e disse que alguém falou num grupo do whatsapp que ele morreu. E eu nem sequer troquei uma palavra com ele. Nunca. Nenhuma vez em toda a minha vida.

solamento

isadora, no auge de sua solidão, começou a mandar mensagem pra carol a cada 7h. um simples e sincero “volta pra mim”.
isadora, no auge de sua solidão e loucura, andou no centro da cidade por um dia inteiro, até parar numa esquina aleatória e chorar. o dono do bar em frente, comovido com a cena, lhe ofereceu uma dose de 51. e ela, que nem bebia, aceitou.
isadora, no auge de sua solidão, loucura e embriaguez, conversou com o dono do bar como se fossem amigos há anos. e ela o abraçou e deu um sorriso como agradecimento.
isadora, no auge de sua solidão e loucura, bateu na porta de carol às duas da manhã. não pediu pra voltar. só queria um abraço e carinho. queria poder dizer que o amor existia, mas que entendia que às vezes é necessário um fim para novos começos.
isadora, no auge de sua solidão, se contentou em estar só.

humAna

ana tem um buraco no meio do peito
onde coloca coisas que não sabe guardar
ou que são grandes demais pro espaço

ana não quer preencher esse lugar vago
ela só quer cultivar as sementes
que a vida ali semear.

o que ficou

eu não te vi
vi apenas seu reflexo
sorrisos e cabelos soltos.
você parecia feliz.
quer dizer,
a sua imagem me dava essa impressão,
porque em momento algum eu pude
de fato te ver.

guardei em minha mente uma ilusão de você.

impaciência

eu não soube esperar
o tempo que você pediu
não soube firmar meus pés no chão
sentar de braços cruzados
vendo as coisas flutuarem
no vento na água em mim
escaparem por entre os espaços
falsamente criados
entre eu e você
eu não soube me calar no vazio
nem permanecer ausente
diante do teu silêncio.